Vinho de talha, você ainda vai provar um
Infelizmente, não há no Guia dos Vinhos nenhum branco ou tinto elaborado em ânforas, os potes de terracota onde foram feitos os primeiros vinhos na Antiguidade e que voltaram à cena em tempos recentes. O sucesso do italiano Josko Gravner não deixa dúvidas da qualidade destes vinhos, pena que o produtor italiano desistiu de exportar para o Brasil pela burocracia do nosso mercado.
Essa ausência no guia dos chamados vinhos de ânfora – ou de talha, quando se trata de exemplares do Alentejo – indica que estes brancos e tintos ainda são um nicho. Mas quando a vinícola Catena anuncia que seus vinhos em ânfora estão chegando ao mercado brasileiro, a impressão é que este nicho em breve já não será tão pequeno assim e que devemos prestar atenção a eles.
A vinícola queridinha dos brasileiros decidiu partir para as ânforas para resgatar a história de Nicola Catena, o avô de Nicolás Catena, que migrou para a Argentina em busca de um futuro melhor. Em sua nova pátria, ele manteve a cultura de elaborar o seu próprio vinho. Três gerações depois, chega ao mercado brasileiro três tintos da nova linha La Marchigiana, um elaborado com uva criolla grande, outro com a bonarda e um terceiro com a malbec. Os três são feitos em ânforas, onde as uvas ficam por três meses, são leves e frutados. O criolla grande é o mais típico, traz certa rusticidade e notas de frutas frescas. Convida para beber várias taças. O malbec, por sua vez, tem maior complexidade e sua nota floral é evidente, mas passa a impressão que talvez seja uma uva para ser fermentada em tanques de inox, com o controle de temperatura.
O melhor exemplo do interesse pelas ânforas, no entanto, é o festival Amphora Wine Day, que o produtor Pedro Ribeiro organiza no Alentejo, sempre em data próxima ao dia de São Martinho (11 de novembro) – a sétima edição, a de 2024, será em 16 de novembro, para quem quiser colocar na agenda.
Com número crescente de produtores e de visitantes a cada edição, o festival mostra que vinho em ânfora não é aquela bebida rústica, quase caseira, que os avôs elaboram no porão de casa. Há vinho bom, equilibrado e com tipicidade feitos nestes recipientes de barro.
É certo que o interesse de enólogos experientes pelas ânforas ajudou muito nesta nova fase das ânforas. Antes de pensar em ter um festival, Ribeiro teve um dos seus vinhos em ânfora destacados pela crítica inglesa Jancis Robinson. Foi o Bojador, seu projeto pessoal no Alentejo (ele também elabora, junto com sua mulher Catarina Vieira, os vinhos da Herdade do Rocim), que a crítica inglesa elegeu como um dos dez rótulos para se prestar atenção em Portugal. E Ribeiro não é o único enólogo português que gosta de trabalhar com ânforas. Dos irreverentes Dirk Niepoort e António Maçanita a Hamilton Reis, do Mouchão, são muitos os que apostam nos potes de barro como recipientes de fermentação ou amadurecimento dos vinhos.
Ribeiro utiliza as ânforas de diversas maneiras. A primeira, da maneira clássica, com as uvas fermentando nestes potes de cerâmica e seguindo as regras para pleitear a DOC Talha. Utiliza apenas variedades locais, com engaço, leveduras indígenas e começa a abrir as ânforas no dia de São Martinho. Mas elabora também outros vinhos que não são enquadrados na DOC Talha. Desde utilizar ânforas pequenas, apenas para amadurecer o vinho, até aqueles que têm curta passagem nas talhas. Ao todo são oito vinhos em que a ânfora está presente, e que totalizam 60 mil garrafas, por safra. Quando começou, em 2010, foram 2 mil garrafas.
Há também uma descoberta das variedades ideias para as ânforas. Assim como a criolla grande se mostrou mais propensa às ânforas na Argentina, em Portugal e, principalmente, no Alentejo, há uma discussão de quais são as uvas para a talha.
Dos vinhos provados no Amphora Wine Day, aqueles elaborados com uvas como moreto e castelão se mostraram bem mais interessantes do que os elaborados com alicante bouschet. A impressão, ao menos por enquanto, é que as ânforas pedem uvas mais delicadas. O produtor Shota Lagazidze, um dos representantes da Geórgia no evento português, diz que ânfora, que lá é chamada de qvevri e é enterrada, ao contrário da Europa, em que elas ficam enfileiradas nas vinícolas, defende que apenas variedades autóctones devem ser utilizadas. E ele fala com experiência – afinal, o vinho nasceu em sua região, ao menos 8 milhões de anos atrás.